segunda-feira, 27 de julho de 2009

O 4º E - Capítulo II

Quem esclareceu de um rompante só foi Alexandre: - É que Adão, o negro do beliche de cima, conta que esquartejaram o cavalo dele por vingança e desde então Amílcar Pelegrino, o “Sol Quente”, tem pesadelos com os pedaços do bicho que diz estarem em cima de sua cama todas as noites, por isso dorme no piso gelado e quando saímos para a recreação Sol Quente fica sempre na nesga do “astro rei” que banha o pátio reservado para os internos do 4º E na esperança de compensar a friagem noturna, repetindo ininterruptamente: Sol quente é bom, sol quente é bom... ! Adão aparentemente desatento em seu olhar sampaco disse: Quero chocolate, você tem chocolate? A pergunta era para Pedro que respondeu com outra pergunta: Quero bebida, você tem bebida? O homem disse não e Pedro completou: Então estamos quites, também não tenho chocolate. Certo, falou Adão, serenamente. Depois da conversa surrealista decidiu seguir a máxima; “Em Roma, como os romanos”. Sabia que poucos ali se encontravam em condições de desenvolver um raciocínio linear necessário para qualquer diálogo. Porém, compreendera o drama de Sol Quente e se surpreendera com a desenvoltura verbal de Alexandre que justificava sua loucura pelo excesso de “estudo” e por incrível que pareça, era formado em Filosofia . Tudo que foi dito ou feito de bom pelo homem, foi feito por mim. Declarou Alexandre, dizendo-lhe que parafraseava Espinosa, - inquisidor geral da Espanha, cardeal, bispo e ministro da corte de Filipe II, que viveu de 1502 a 1572 -. Orgulhoso de seu conhecimento completou; Todo o louco que acredita ser Jesus, Napoleão ou qualquer personalidade histórica, inconscientemente é uma parte viva do pensamento de Espinosa. Eu sou a síntese! Constatando o sério problema mental de Alexandre pensou o quão confortável seria se em momentos de crise pudesse transferir a responsabilidade para personalidades grandiosas. Depois da prévia de como ia ser sua estadia naquele local, teve a impressão que um pouco abaixo de sua garganta um tijolo negava-se a descer para o estômago. Esbanjando prepotência, dois enormes atendentes estilo “roupeiro de portas abertas” ordenaram que fossem imediatamente ao refeitório, pois quase terminara o horário do café. Não gostando da maneira truculenta das duas figuras, no trajeto para o refeitório, Pedro pensava se os cinco do quarto não venceriam os dois arrogantes na porrada. Difícil, pois além do “grupo de oito”, (equipe formada por oito internos de outra galeria, utilizado para imobilizar revoltosos), entre enfermeiros, auxiliares e atendentes só no 4º E eram vinte, um mais forte que o outro. Já os internos somavam sessenta, mas a grande maioria incapacitada e os mais salientes devidamente dopados. A fila para o café realmente era uma galeria de horrores, seres humanos inchados, desdentados, deformados, cabelos picotados ou raspados por eles próprios com velhos aparelhos de barba, outros nus e todos num ritmo que se resumia em trocar o peso do corpo de uma perna para a outra num balanço doentio. Movimento causado por medicações da família dos neurolépticos, que se por um lado entorpece os pacientes em contrapartida causa imensa agitação interior. Daí o balanço de Sol Quente, Alexandre, Gringo, Valdir e Adão e todos os outros que Pedro ainda não conhecia. O homem começou a imitá-los para que os funcionários não notassem que novamente havia escondido sob a língua e cuspido os remédios no banheiro. Num ambiente como aquele tudo poderia acontecer. O cenário lhe trazia à memória filmes sobre manicômios, mas com a diferença de que ali não havia dublês e nem atores representando. Quando já estava quase entrando no refeitório, um enorme paciente gordo conhecido como Brastemp, enfiou-se na sua frente abrindo espaço a cotoveladas e acertando-lhe uma no rosto. O seu metro e oitenta e três de altura, alcançava apenas o ombro de Brastemp, com o nariz sangrando reclamou a um enfermeiro que ostentava uma bandagem na cabeça. Este o aconselhou a aceitar a ”lei do mais forte”, dizendo que afinal de contas ali, Pedro era o novato. Brastemp que ouvira a queixa o encarava sorrindo debochadamente, era um sósia do Brutus, vilão dos desenhos animados do Popeye, suas sobrancelhas pareciam um grosso risco de caneta hidrocor. Instintivamente e com os nervos a flor da pele, conseqüência imediata da falta de álcool, Pedro deu tal murro na boca de Brastemp que os ossos de sua mão chegaram a ranger. No tombo o gigante derrubou dois outros que estavam na fila. Ao levantar-se veio em direção a Pedro espumando pela boca ensangüentada, com uma tapona deixou estendido um funcionário que tentou segurá-lo. Pedro o esperou simulando com os braços que ia repetir o mesmo golpe, quando a distância se fez exata bateu um “pênalti” com bico do pé direito na genitália do doente mental. Covardia ou sobrevivência? Não teve tempo para chegar a uma conclusão, apenas sentiu o agulhasso da seringa com “anatensol” e logo pessoas lhe carregando ao quarto, amarrando-o na cama, seu corpo todo formigando. Tentou falar, mas seus ouvidos identificaram apenas sons pastosos. Ainda teve tempo de ouvir a frase dita pelo enfermeiro com o curativo na cabeça: Bem vindo ao 4ºE.

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