quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A primeira vez que eu morri

Corria o ano de 1976. Na Praça da Matriz, numa tarde ensolarada de domingo em plena ditadura militar, duas belas “hippies” convidam Paulinho Gal Costa e a mim para fumar um baseadinho no pátio lateral da Catedral Metropolitana. Mais pelas garotas e menos pelo baseado, fui. Mal a erva foi acesa abre-se a porta do salão paroquial e eis que aparece o Cardeal Don Vicente Scherer no mesmo momento em que estaciona o preto e branco camburão da polícia. Paulinho e as meninas entram no salão paroquial e o cardeal fecha a porta. Eu salto o muro dos fundos e como da boca do lobo para a do leão caio no jardim do palácio Piratini, sob a mira das metralhadoras dos guardas da amurada, sem documentos, sou preso e encaminhado à delegacia de polícia na rua Demétrio Ribeiro. A recém instalada 1º delegacia tem suas duas celas em obras, sendo os presos colocados em uma área sem cobertura na parte interna da casa de três andares, em meio a delinqüentes de vários calibres aguardo a vinda de uma equipe da temida delegacia de Furtos & Roubos para ser interrogado. Porque razão a furtos e roubos? Não sei, e nem esperei para descobrir. Passado minutos nesse local noto que toda a fiação elétrica da casa corre junto ao canto da área, sem pensar duas vezes, deixando os chinelos, (pois em pleno verão passeio só de calções, camiseta e chinelos), descalço escalo os três andares da delegacia sob o olhar cúmplice dos presos, chego ao telhado e rapidamente pulo para o telhado da casa contígua e dessa para uma terceira, agora só falta alcançar com um pequeno salto o muro que separava o terreno baldio da rua de cima. O problema foi às telhas dessa última casa quebrarem-se sob os meus pés e eu despencar no vazio e cair, como bola na caçapa, em um tanque de lavar roupas cheio de roupas de molho e olha que era um tanque pequeno, caio eu um centímetro para o lado estou no mínimo paraplégico, machuco apenas o pé esquerdo que bate em um engradado de garrafas provocando um pequeno corte. Levanto-me e chego ao terreno baldio da Rua Fernando Machado, sigo para a rua Duque de Caxias e logo à General Portinho e em seguida a rua da Praia. Consigo chegar até em casa, parece coisa inventada, mas é fato acontecido lá nos meus distantes dezesseis anos. Foi à primeira vez que eu morri.
Confira também; http://ratoqri.blogspot.com/2008/07/primeira-vez-que-eu-morri_26.html
e http://ratoqri.blogspot.com/2008/07/segunda-vez-que-eu-morri.html e http://ratoqri.blogspot.com/2008/08/terceira-vez-que-eu-morri.html  ehttp://ratoqri.blogspot.com/2008/10/quarta-vez-que-eu-morri_29.html e aqui "a quinta vez que eu morri";  http://ratoqri.blogspot.com/2011/04/minha-fala-e-um-elogio-experiencia-e.html. http://ratoqri.blogspot.com.br/2011/04/sexta-vez-que-morri.html e aqui o poema que me inspirou; http://ratoqri.blogspot.com/2011/02/poema-em-linha-reta.html , a escrever a série "As sete vezes que morri", que como podem notar ainda falta a última. Todos os contos são de ficção e qualquer relação com a realidade são mera coincidência.

A terceira vez que eu morri

O erro foi termos levado às gêmeas em casa à noite em Alvorada. Conhecemos as gêmeas na pracinha da ACM onde estudávamos. Duas gatinhas “cocotas”, era moda na época, calças bem justinhas, estourando e ressaltando a beleza. O Paleta conquistou uma e eu a outra, alto agarra-agarra na ponte de pedra dos açorianos e depois uma esticada na beira do Guaíba, quase um motel ao ar livre na época, 1977. Depois de um vinhozinho ao pôr-do-sol fomos levar as gatas em casa. Moravam em Alvorada, que naquele tempo já era super barra-pesada, nós apaixonados fomos levá-las até a porta de casa. Eu com um casaco novo das lojas Renner, de costas em couro e pele sintética na frente, uma breguice só, mas na época eu achava o máximo, recém ganho de aniversário de dezessete anos. Na volta, no escuro, o Paleta me inventa de atalhar por dentro da praça central de Alvorada, um breu danado, claro que antes do meio da praça fomos assaltados. Dois caras, um branco magrinho e um baixinho negro com uma garrucha de dois canos. Tira toda roupa, falou o magrinho. O amigo se pelou no ato, eu encostado numa árvore temendo pelo meu casaco novo fiz o pior erro que uma vítima pode fazer em um assalto, disse; a mim ninguém assalta. Os dois não esboçaram reação contrária, continuaram recolhendo as roupas e objetos do Paleta. Eu observando aquilo pensei; aceitaram o meu blefe. Depois que o magrinho juntou tudo do Ike o baixinho sem me olhar apontou a arma e disparou um tiro, os dois fugiram correndo. Caí de joelhos, o Paleta gritava, olhei pra minha barriga arroxeada, pensei; vou morrer, abri as calçar, mas não vi sangue nem ferimento. Atravessamos a praça e fomos embaixo de um poste de luz, nada, só o vergão do impacto. Quando vou abotoar as calças Lee vejo o botão torto. Fui salvo pelo botão das calças Lee. Parece a história do dólar furado, mas aconteceu comigo, tenho o recorte da calça com o botão amassado pelo tiro. Foi à terceira vez que eu morri.

A quarta vez que eu morri


Quem conheceu a praia da Pinheira em Santa Catarina no ano 1983 sabe o que é estar numa região exuberante, ainda livre dos predadores imobiliários, onde a mata atlântica livremente encontrava o oceano e no sopé dessa mata uma pequena aldeia de pescadores. Meu irmão, um amigo e eu estamos a nos proteger do forte sol da manhã degustando uma cachacinha marisqueira quando surge à procissão do “Divino Espírito Santo” que antecede a procissão dos barcos no dia de navegantes. Festa maravilhosa, com todos os moradores da aldeia carregando estandartes coloridos e cantando ladainhas que nada tinham a ver com os cantochões católicos da minha infância. Sentimo-nos num especial de tv da national geographic. Claro que nos juntamos à festa, já que além da beleza, comportava em passar de casa em casa provando guloseimas e tomando cerveja. No final somos convidados pelos pescadores a embarcar e seguir pelo mar. Depois de meia hora de cantigas e ladainhas religiosas e muitas, mas muitas doses de cachaça marisqueira decidimos abandonar o passeio nadando até a praia que vista do barco nos parecia próxima. A calmaria do mar e a energia dos vinte poucos anos nos garantiriam a empreitada. Péssima idéia, depois de dezenas de braçadas com a sensação de não sair do lugar, eu já não enxergava os barcos nem meus companheiros e a praia continuava a mesma distância. Com fortes câimbras comecei a flutuar, o sol estava escaldante. O desespero, o silêncio, o susto, o medo e o pavor, quase me paralisaram, mas a consciência me alertava que isso seria fatal, dessa forma tive que apreender a raciocinar sobre forte tensão. Enchi os pulmões de ar e me deixei afundar relaxando todos os músculos do corpo e assim fui alterando braçadas com períodos de mergulho relaxante. Passados nessa maratona aquática trinta ou quarenta minutos, não saberia precisar, senti terra embaixo dos pés e cambaleando cheguei até a praia, onde desmaiei, mas antes conferi que meu irmão e o amigo também haviam sobrevivido e já se encontravam estirados na areia. Dormi das dez da manhã às quatro horas da tarde, acordei “bronzeado” só de um lado do corpo, estilo picolé de dois sabores. Foi a quarta vez que eu morri.