segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Crise, luta e esperança

Por Miguel Urbano Rodrigues


A História ensina-nos e hoje, a vida confirma-o uma vez mais: não há impérios eternos. No entanto, é inevitável que a actual crise civilizacional “conduzirá ao desmoronar do capitalismo ou a uma era de barbárie”. Generalizar a compreensão do presente momento histórico por um sempre crescente número de pessoas é uma tarefa imperativa que nenhum revolucionário pode recusar.

O fim da atual crise de civilização é imprevisível. Inevitável, conduzirá ao desmoronar do capitalismo ou a uma era de barbárie.
Prever datas para o desfecho seria, porém, um exercício de futurologia.
Mas uma certeza se esboça já no horizonte: a derrota espera o imperialismo nas guerras criminosas que os EUA desencadearam para manter e ampliar o sistema de dominação mundial do capital.

Os EUA estão atolados em guerras perdidas no Afeganistão e no Iraque e a sua aliança com o Estado neofascista de Israel é um factor de tensão permanente no Médio Oriente. As estratégias agressivas que desenvolvem na América Latina, na África e na Ásia Oriental são também incompatíveis com as aspirações dos povos ameaçados, contribuindo para o subir da maré anti-americana.
Nesta fase, iniciada com as agressões no Médio Oriente e Ásia Central, o imperialismo estadunidense encontrou situações históricas muito diferentes da que precedeu o seu envolvimento no Vietnam e a humilhante derrota que ali sofreu. Nos EUA somente uma minoria percebeu que a guerra estava perdida quando Giap desfechou a ofensiva do Tet. A resposta de Johnson e Kissinger, cedendo aos generais do Pentágono, foi a ampliação da escalada. A agressão alastrou para o Laos e Washington enviou mais tropas para a fornalha vietnamita, semeando a morte e a devastação no Sudeste Asiático.
Transcorreram anos até à retirada dos EUA. Os povos foram lentos a compreender que o desfecho da trágica agressão ao Vietname era o prólogo de uma crise que significou a perda da hegemonia que Washington exercia sobre a economia do Ocidente desde o final da IIa. Guerra. Nada foi igual desde então.
Mas o establishment norte-americano não extraiu as lições implícitas no fracasso das guerras da Coreia e do Vietname. A estratégia foi reformulada, mas a ambição imperial permaneceu, assumindo novas formas.
O cenário das agressões adquiriu proporções planetárias a partir do desaparecimento da União Soviética.
A primeira guerra do Golfo foi decidida no final da presidência de George Bush pai perante a passividade da URSS, prestes a desintegrar-se. Washington proclamou então que a humanidade havia entrado numa era de paz permanente, sob a égide dos EUA, garantes da Nova Ordem Mundial. Um obscuro epígono do capitalismo, Francis Fukuyama, saudou a morte do comunismo e anunciou o «Fim da História», apontando o neoliberalismo como a ideologia para a eternidade.
O desmentido aos profetas imperiais não tardou.
Quando as torres do Word Trade Center desabaram, o mundo entrou numa fase de turbulências anunciatórias de uma profunda crise de civilização. Após o 11 de Setembro de 2001, Bush filho, alegando necessidade de uma «cruzada contra o terrorismo», e afirmando que Deus estava com os EUA, invadiu o Afeganistão, semeando a morte a destruição naquele remoto país da Ásia Central.
Depois chegou a segunda guerra iraquiana, iniciada à revelia do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A terra milenária da Mesopotâmia foi ocupada, os seus museus saqueados, o seu petróleo e gás entregues às petrolíferas dos EUA, dezenas de milhares de iraquianos chacinados.
Autoproclamando-se nação predestinada, com vocação para redimir a humanidade dos seus pecados, os EUA, sob a batuta da extrema-direita republicana, passaram a atuar como um Estado terrorista, disseminando o terrorismo pelo planeta.
Essa trágica situação somente foi possível pela cumplicidade da União Europeia, do Japão e do Canadá, estados ditos civilizados. Com o seu aval ao establishment bushiano abriram as portas à barbárie.
A eleição de um negro para a Presidência dos EUA gerou a ilusão de que o pesadelo iria findar. Mas Barack Obama, que chegou à Casa Branca com o apoio entusiástico do grande capital, mudou o discurso, mas manteve a politica imperialista. Pior, agravou-a.

O PÂNTANO AFEGÃO

Admiradores do Presidente norte-americano afirmam que ele é um humanista, vítima de uma engrenagem que o instrumentaliza. Mas a defesa que dele fazem não convence.
O Prémio Nobel da Paz tomou decisões que contribuíram para aprofundar a crise mundial. No plano interno a sua política tem sido, no fundamental, de capitulação perante as exigências do grande capital. Significativamente, o seu secretário do Tesouro, Geithner é um político que goza da confiança total de Wall Street.
No terreno internacional, o Presidente aumentou muito o orçamento do Pentágono, pediu ao Congresso verbas colossais para as guerras asiáticas, enviou mais 30.000 militares para o Afeganistão, e faz da vitória nessa guerra uma prioridade da sua politica exterior.
Entretanto, acumula derrotas no teatro afegão. A ofensiva no Helmand foi um fracasso; a de Kandahar foi sucessivamente adiada.
A divulgação dos documentos secretos oferecidos pela WikiLeaks ao NY Times, ao Guardian e ao Der Spiegel instalou o pânico na Casa Branca, e o inquérito do Pentágono sobre a fuga de informações classificadas abalou fortemente a confiança dos americanos no sistema de segurança do Departamento de Defesa.
Em declarações recentes, Julian Assange, o australiano que criou o WikiLeaks, revelou que crimes cometidos pelo exército dos EUA excedem em horror os massacres do Vietnam. A chamada Força Tarefa Conjunta 373 tem por missão abater secretamente chefes talibãs e elementos suspeitos de pertencer à Al Qaeda.
Grupos de matadores especiais intitulados Kia são responsáveis pelo assassínio de centenas de civis em ataques cujas vítimas são designadas nos relatórios como «mortos em ações».
O rol dos crimes das tropas de ocupação da NATO também ocuparia muitas páginas. A chacina de Kunduz, da responsabilidade do contingente alemão, abalou o governo da chanceler Merkel, mas foi apenas uma das muitas matanças de civis cometidas pelas tropas de ocupação.
Julian Assange cita como exemplo das atrocidades dos aliados o bombardeamento de uma aldeia por uma força polaca. Dezenas de pessoas ali reunidas para festejar um casamento morreram num ato de retaliação concebido com crueldade.
Rotineiramente, o alto comando norte-americano promove inquéritos nesses casos para «apurar responsabilidades». Mas ninguém é punido.
Hamid Karzai, o presidente fantoche, protesta e pede providências, mas a indignação é simulada.
Milhares de civis nas aldeias da fronteira paquistanesa foram mortos pelos bombardeamentos realizados pelos drones – os aviões sem piloto. O atual comandante Supremo, o general Petraeus, define essas «missões» assassinas como indispensáveis ao êxito da nova estratégia de luta «contra o terrorismo»

FARSA DRAMÁTICA

Hillary Clinton, o vice-presidente Joe Binden e James Baker, o secretário da Defesa, têm visitado frequentemente o Afeganistão.
A encenação pouco varia. Deslocam-se para levantar o moral das tropas, dizer lhes que estão a lutar pela pátria, pela liberdade e a democracia contra o terrorismo, que a luta exige grandes sacrifícios, mas que a vitória na guerra afegã é uma certeza.
Todos aproveitam para pedir ao Presidente Karzai que «governe democraticamente», afaste colaboradores que não merecem a confiança dos EUA, e ponha termo à corrupção implantada no país.
Karzai faz promessas, reúne assembleias tribais que lhe aprovam a política e repete que é fundamental negociar com os «talibãs recuperáveis». É ele, chefe da máfia, o primeiro responsável pelo sumiço de milhares de milhões de dólares doados em conferências internacionais para o desenvolvimento e reconstrução do país, destruído pela invasão americana. A realidade não alterou o método. Em Kabul, a última dessas conferências acaba de aprovar mais uns milhares de milhões para «ajudar» o Afeganistão.
Entretanto, a produção de ópio, insignificante à data da invasão, aumentou 90% na última década.
É do domínio público que familiares do presidente mantêm íntimas ligações com o negócio da droga.
Nas suas periódicas visitas ao Paquistão, Hillary Clinton admoesta o presidente Asif Zardari pela insuficiência do esforço de guerra nas áreas tribais do Waziristão na fronteira do Afeganistão. Joe Binden repete-lhe o discurso. Ambos insinuam cumplicidade do Exército com as chefias talibãs.
O Primeiro-ministro britânico Cameron ao visitar o país foi tão longe nas suas críticas que o governo de Islamabad cancelou uma visita a Londres do chefe dos serviços de inteligência paquistaneses convidado pelo Intelligence Service.
Crônicas de correspondentes europeus em Kabul e declarações de soldados dos EUA regressados da guerra afegã esclarecem que a moral das tropas de combate caiu para um nível muito baixo.
A demissão do general Stanley McChrystal, que criticara numa entrevista o presidente Obama, contribuiu para acentuar o mal-estar no Alto Comando. O general tem um currículo de criminoso, mas as suas opiniões sobre a condução da guerra são partilhadas por muitos oficiais.
Assim vão as coisas na guerra podre do Afeganistão.
No Iraque, a «pacificação» é um mito como demonstra o aumento de mortos em atentados bombistas em Bagdad e na região Norte, controlada pelos kurdos. O discurso de Obama aos veteranos deficientes, no dia 1 de Agosto, sobre a retirada das tropas foi um exercício de hipocrisia, semeado de mentiras e estatísticas falsas.
Na Palestina, Israel continua a bloquear Gaza, bombardeada com frequência, e amplia a construção de casas na Jerusalém árabe e em colonatos na Cisjordânia.
O Irã é atingido por novas sanções, aprovadas pelo Conselho de Segurança, e a CIA promove atentados terroristas no Kuzistão, fronteiro do Iraque, e na província baluche, vizinha do Paquistão.
Na América Latina, Uribe, nas vésperas de ceder a presidência a Juan Manuel Santos, seu filhote político, criou uma crise com a Venezuela bolivariana ao forjar acusações sobre a presença das FARC em território daquele país. Os EUA, que vão instalar 7 novas bases militares na Colômbia, aprovaram imediatamente a provocação.

XXX

Neste contexto de escalada militar em múltiplas frentes, a crise interna prossegue. O magro crescimento do PIB esconde a realidade.
O número de casas vendidas é o mais baixo dos últimos anos. Milhares de empresas fecham todos os meses. Em cidades outrora famosas pela riqueza, como Detroit e Pittsburg, bairros inteiros estão hoje desabitados. O desemprego alastra. Nas universidades aumenta o ensino elitista. A tão elogiada reforma dos «cuidados de saúde» dificultou mais o acesso de milhões de imigrantes ilegais aos hospitais (v.Fred Goldstein, odiario.info, 22.04.2010).
A Finança, essa prospera. Os gestores dos grandes bancos continuam a receber reformas e prémios fabulosos. Um desses gigantes, o Wells Fargo, acumulou lucros de milhares de milhões de dólares com a lavagem do dinheiro da droga (v.Cadima, «avante!», 29 .07.2010).
O controle hegemônico do sistema mediático pelo grande capital impede, porém, a humanidade de tomar consciência da profundidade da crise. Nos EUA, pólo do sistema, o discurso do Presidente transmite um panorama otimista da situação, anunciando melhores tempos e vitórias imaginárias.
Somente uma minoria de cidadãos, nos EUA, na Europa, e nos demais continentes estão em condições de decodificar o discurso da mentira irradiado pelo grande capital.
Para as forças progressistas ajudar os povos a compreender a complexidade e a extrema gravidade da crise do sistema é, por isso mesmo, uma tarefa revolucionária. Porque essa compreensão é fundamental para o incremento e dinamização da luta dos trabalhadores em cada país contra o projeto de dominação imposto pelo sistema que ameaça mergulhar a humanidade na barbárie.

Vila Nova de Gaia, 2 de Agosto de 2010

extraído d'ODiario.info