quinta-feira, 1 de julho de 2010

Se acaba o carinho, sobra o quê, sabidões?

Por Bruna Scarpioni

Constance Reid era uma menina escocesa inteligente e livre. Experimentou sexo antes de casar-se e concluiu que não passava de uma bobagem incapaz de equiparar-se com o que ela chamava de ‘vida intelectual’. O que importava mesmo era um homem com quem fosse possível conversar, desenvolver-se como pensante. Casa-se com Clifford Chatterley, um rapaz inteligente e nobre, com quem ela interage mentalmente, ainda que a vida sexual-amorosa dos dois seja medíocre. Torna-se Lady Chatterley e Clifford volta da guerra paralítico, o que é um golpe de soco inglês no estômago de seu orgulho masculino e aristocrata. Constance isola-se do mundo, presa em Wragby, casa vizinha das minas de Tevershall, pertencentes à família do marido. Marido esse que exercita a megalomania e a depressão, a arrogância e a infantilidade depois do acidente. Connie era uma escocesa alegre e robusta, com corpo e personalidade moldadas para gozar do mais orgânico que a vida oferece. E vai murchando ao lado de Clifford, um aristocrata obcecado por dinheiro e status como último recurso para mostrar-se digno e respeitável aos outros. O pai de Connie farejava algo errado. Farejava com sua natureza bonachona e sensual, orgânica e doce, e com uma sabedoria de lobo do mar. Clifford era paraplégico. Não podia trepar. E permitia que Connie engravidasse de outro homem e desse ‘um herdeiro a Wragby’ sem que o ‘entendimento intelectual’ entre eles fosse prejudicado. Mas não era carinhoso com Connie. O pai dela sabia ser carinhoso. Clifford, não. Uma mulher pode conseguir experiências sexuais. Pode conseguir prazer até mesmo sozinha. Mas carinho…carinho é o que a gente precisa pra viver. Carinho é aconchego em outros humanos, aconchego físico ou psicológico. Carinho é o que faz a gente ter vontade de ficar ali. De ficar com ele, com ela. Carinho é calor. O calor que a gente passa a vida buscando, calor que leva a verdadeiras crises de solidão quando a gente constata que está há muito tempo sem algo que precisa mas não sabe o que é. Carinho é o que Brigitte Bardot experimentou quando chegou chorando no set de A Verdade, após uma briga violenta com Jacques Charrier, seu marido, e o ator Samy Frei, que nunca tinha lhe dirigido a palavra, tocou sua mão enquanto ela segurava o choro. Carinho é aquele momento em que vocês sustentam o olhar sem ter medo, se assustam com tudo o que veem e descobrem, sem palavras, que tem muito. Carinho foi quando Bebel, saindo da sede da televisão, foi comprar uma ficha de ônibus mas não tinha troco. Marcelo, um rapaz robusto, beirando o rude, cheio de sonhos e de bondade, disse pra ela trazer depois. Ela disse que ele nem parecia funcionário público, e eles sorriram como há muito num sorriam, num entendimento imediato, inquestionável, silencioso, que durou até que ela afundasse no lodo da cidade e que ele morresse nas mãos dos militares, com uma foto dela trincada nas mãos.

Carinho é essa ligação instantânea, mais forte do que tudo, esclarecedora de tudo, capaz de aquecer o coração da gente sem que a gente perca a identidade, como prega o amor romântico. Carinho é o laço mais doce que pode unir humanos. Carinho se manifesta entre amigos. Carinho se manifesta onde há honestidade destemida, onde os dois se mostram, talvez não muito confiantes, mas se mostram. E gostam do que veem, sem perceber que gostam. Desarmam-se, sem pensar em se defender ou esconder-se, porque não dá tempo de pensar. Um conhecimento milenar sobre o outro que manifesta-se de súbito, e os dois tem a coragem de seguir esse ímpeto, sem se questionar, sem julgamento. O carinho lhes basta.

Moralistas: Favor não confundir o tema desta coluna com essa baboseira de romance de banca de jornal que vocês chama de amor à primeira vista. Ain, que ânsia que me dá!

Carinho brota entre dois desconhecidos. Entre inimigos declarados. Entre professor e aluno. Entre hetéro e homo. Qualquer coisa, qualquer pessoa. Duram uma noite, uma tarde, dez minutos, o tempo do ônibus chegar, um beijo, ou nada. É uma experiência única. Ou se repete pra alguns sortudos que a deixam entrar. Carinho acontece. Não sei como, mas acontece. De súbito. Sem regras. Sem o monte de formas e fórmulas que nós aplicamos ao amor. Sem o monte de merda que jogamos em cima do sexo. Sem regras. E isso dá um medinho em quem tá acostumado a teorizar tudo, a procurar as melhores formas de viver os sentimentos e os melhores sentimentos, os melhores modelos de felicidade. Isso assusta quem é bombardeado por uma série de conceitos e preconceitos sobre amor. O que a gente nem sabia definir acaba sendo definido pelo que é a aparência correta, os hábitos corretos, o comportamento correto, as técnicas corretas de atração, o parceiro correto, tudo por uma módica quantia que, na maioria das vezes, a gente nem percebe que está pagando. Uma receita matemática disfarçada de simples e infalível. Não é. Não funciona. E é preciso mais uma. E as fórmulas vão mudando na velocidade da luz, após serem consumidas. Precisamos de ilusões novas, galãs novos, mais dinheiro. Afinal, o que a gente tem em casa, ou nem tem, não tem a menor graça. Porque, desde não sei que momento nefasto, a humanidade desaprendeu a amar, a trepar e a gozar de verdade a bênção da vida.

A gente comercializa amor e sexo. E esquece completamente de carinho porque, se se lembrasse, ia simplesmente abandonar todas essas besteiras e conselhos e análises brilhantes dos especialistas da Revista Nova e dos “autores de novelas”, que gabam-se de “responsabilidade social” e “verossimilhança” em suas obras. Meu cu pra tudo isso, meus amores.

Carinho é o que Constance Chatterley encontrou em Oliver Mellors, couteiro de seu marido. Um homem aparentemente rude, isolado e esclarecido, que preservava-se de ser engolido pelo dinheiro, pelo espírito pequeno-burguês medíocre da Inglaterra, e pela maneira como os humanos tratam seu corpo como um monte de lama valioso. Um homem organicamente rude, impossível de comprar, destemido, incapaz de enxergar cargos, classes e qualquer coisa que transcendesse o mais importante da vida, a ternura. Ternura que, ele tinha certeza, não existia em lugar algum. Uma mulher que fosse doce, que não tivesse medo de ser fêmea. Que não fosse vazia por ser fêmea, que gozasse seu sexo livre e digna. Que respeitasse um homem. Que o respeitasse inteiramente e não o invadisse, o violasse psicologicamente, que não tivesse esse prazer perverso que as mulheres tem em machucar seus homens, em testá-los, em levá-los ao limite. Mellors e Constance estão no mais absoluto abismo psicológico, descrentes de qualquer tipo de relação humana bem sucedida. Cansados dessa máquina de emoções humanas, desse triturador de emoções que é a sociedade e seus dogmas. Desses homens e mulheres triturados, congelados, defendendo-se do perigo que é viver sentimentos genuínos nessa selva. E irmanam-se nessas dores. Mellors leva Constance a redescobrir sua feminilidade orgânica, a reviver por dentro, sexual e emocionalmente. A acreditar em ternura. Mellors é, acima de tudo, um homem terno. A seu modo. O que não impede que Connie sinta essa ternura, e que ela lhe devolva a vida. Mellors é forçado por uma mulher forte, íntegra e corajosa o suficiente pra ser doce a entrar em contato com suas emoções. E a ama. Ama novamente. Ama de verdade. E o autor nos dá pérolas como ‘ela abraçou seu corpo, o único lar que havia conhecido’.

O amor de Constance e Oliver é de poucas palavras. É, para alguns, de palavras rudes, até. Para os padrões de romantismo de folhetim barato que vivemos, é anti-romântico. O sexo ocupa o papel de religar os personagens a suas emoções, a sua fé nas emoções, o papel de meio de troca de carinho. O carinho traz os personagens de volta à plenitude emocional, à plenitude de sentimentos, de vigor na vida. Ainda que tudo, absolutamente tudo seja-lhes proibido pela máquina de respeitabilidade social.

Mas vivem com carinho. O carinho os uniu e mantém unidos. Pagam os preços por isso, porque calculam que vale a pena.

Eu não busco amor. Acho que é muito raro, sério, muito sagrado pra ser pensado e vivido aos 18 anos de idade. Acho amor muito denso, muito especial, muito inesperado, muito importante. Tenho um respeito enorme pelo amor, uma verdadeira reverência. E não posso vivê-lo num momento em que estou me despindo de uma série de enganos que me ensinaram com a melhor das intenções. Quero me apresentar pura para o amor. Pureza mental, emocional. E até física. E isso exige provar sexo. Está na hora. Madonna disse que fez sexo pela primeira vez, mas continuou virgem até entender o que tinha feito. Acontece comigo o contrário. Sexo é prazer. É uma integração física que pouco ou nada tem a ver com amor. Sexo puro é triste. Mecânico. É como comer um prato de arroz, feijão, farinha e bife. Uma delícia. Saiu dali, acabou. Nada. Eu espero carinho da minha primeira relação sexual. Eu espero intimidade física completa. Generosidade. Vontade de fazer bem ao outro, de deixar o outro bem. Criatividade. Espontaneidade. Carinho, muito carinho. Um carinho capaz de me levar a uma feminilidade adormecida em mim. Um carinho capaz de me tocar bem fundo no coração sem me privar da minha liberdade e das minhas escolhas. Um carinho descompromissado, sem obrigações nem procedimentos. Acho que eu mereço. Estou idealizando? Será que ainda sobra um rapaz orgânico, corajoso e terno pra isso? Não é um convite. É uma indagação. O carinho está se perdendo, na melhor das hipóteses. Ou já está perdido ou não chegou nem a se desenvolver. E eu quero mover a minha vida a carinho e a criação.
O negócio é não desistir e ter coragem, né?

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