segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Tinta


Acrílica s/ papel.
 Simch

Tinta

No atelier o som do computador
Toca velhas músicas na jovem rádio
O pintor coça as picadas dos mosquitos
A tinta escorre do pincel como se dinheiro para compra-la fosse farto
A obra está pronta, só falta existir
Assim como a paz e o fim da fome no mundo

Um inseto cai no copo de bebida
O artista o engole junto com a  morna cerveja
Tudo é demorado, com exceção do tempo
Esse senhor que nos leva das fraldas a mortalha
Uma pincelada é necessária para que outras a acompanhem

A morte apareceu na tela reluzente da máquina nova
O rock and roll começou a mostrar que não era para homens velhos
Arte, outra música ou fugir da morte?
Um pássaro bateu no vidro, namorando o próprio reflexo
Vivo, quero continuar vivo dizia o pássaro antes de cair exausto no chão.

As janelas estão abertas
As portas e frestas também, porque morrer?
Sem muito cuidado a ave foi atirada nas sombras da noite
Sumiu na escuridão da floresta.
A escuridão da floresta só é boa para os pássaros e os pintores


Simch



sábado, 20 de dezembro de 2014

O 4º E





O 4º E
Os sete pontos na sobrancelha ainda doíam quando a ambulância o deixou na instituição. Pedro ia para seu terceiro internamento por álcool e drogas, sentia que as coisas não iam bem e que seu horizonte era nebuloso. Na chegada ao hospício, bêbado brigou com um enfermeiro e em consequência foi direto para a ala de contenção, o famigerado 4°E. A ala de contenção do hospital psiquiátrico abrigava pacientes com histórico de violência, tentativa de suicídio, dependência química pesada e graves doenças mentais, além de servir de trânsito para presos do manicômio judiciário a espera de audiências e menores infratores que participaram de motins em suas instituições correcionais. Depois de medicado custou a achar o dormitório que era um dos últimos da grande galeria. No recinto havia uma janela gradeada por fora de onde pendiam trapos atirados por internos da “Freud”, ala que ocupava o andar superior. Havia três beliches e duas camas de ferro, ao lado da porta um beliche com a cama de baixo desocupada, porém sem lastro nem colchão. Forte cheiro de urina mal disfarçado por desinfetante. Na enfermaria o atendente lhe dera cobertores, lençóis e um travesseiro, além de ordenar que tomasse banho e vestisse o puído uniforme do 4º E, recomendando-lhe silêncio e ressaltando em tom ameaçador que ali havia regras. Na impossibilidade de dormir no chão úmido e gelado o homem voltou até a sala da enfermaria no início do corredor. Emerson, o enfermeiro, fazia anotações em um fichário. Quando o viu quis logo saber o porquê de este não estar dormindo, Pedro respondeu que não havia colchão nem lastro na cama. O enfermeiro, levantando-se e abrindo a meia porta estilo balcão mandou o interno entrar, e disse em tom baixo, mas extremamente autoritário: A distribuição de colchões e demais artefatos é feita durante o dia, quem é internado a noite dorme como puder, não fazemos preparativos durante a madrugada e, além disso, você não está dormindo porque não tomou o remédio e sim o cuspiu fora, se na medicação da manhã isso se repetir eu mesmo lhe aplicarei um sossega-leão na veia do pescoço que te fará dormir por dias. O recém chegado não disse nada, então o atendente apontou uma porta ao lado do banheiro dos funcionários e disse: Ali tem colchões, pegue um. Haviam seis colchões em estado razoável, três só na espuma e um quase novo que foi o escolhido. Tomou banho, vestiu a roupa e pôs o colchão no chão, dentro do buraco sem lastro no espaço de baixo do beliche. Um grupo de garotas de babydol corria e saltitava pelo corredor. Uma sirene tocou interrompendo seu sonho, abriu os olhos, a faxineira adentrou o quarto proclamando: Hora do café pessoal, vamos levantar! A friagem e o coral de tosses despertou-o por completo. Sentou-se na lateral da cama e deu de cara com um homem branco, forte como um touro, sem os dois dentes da frente sorrindo efusivamente e tendo nos olhos o registro da pesada medicação. Quer fumar? Perguntou Alexandre. Assim se chamava o interno, mostrando vários cigarros avulsos nas mãos espalmadas. Aqui eu fumo oitenta por dia e nunca me faltam cigarros, completou. Pedro aceitou um, acendeu e olhou em volta. O beliche que ficava no meio do quarto servia como pedestal a um imenso homem negro com o olhar perdido que sentado na cama de cima balbuciava algo sobre cavalos mortos. Ao lado, deitado no chão, “Sol Quente”, magrinho e agitado gargalhava fumando um toco de cigarro. No outro extremo do quarto, no leito de cima de um dos beliches, Valdir, mostrando a dentadura postiça, cantava músicas românticas ininterruptamente. Na cama de baixo, um italiano conhecido como Gringo, tentava explicar acontecimentos de sua vida sem que ninguém lhe desse atenção. Instigado pelas risadas de "Sol Quente" Pedro começou a observá-los com atenção, nesse momento Valdir tomou uma atitude raríssima, parou de cantar. O novato era foco da atenção dos pacientes. Olhavam-no como se esperassem que falasse algo. Sou agnóstico. Declarou inspirado no crucifixo que Valdir ostentava no pescoço. Poderia ter dito qualquer outra coisa para por fim a expectativa. Sol Quente parou de rir. Agnóstico é uma palavra grega: “a” em grego significa “não”, gnosis “saber”. O agnóstico diz; “Não sei se há uma realidade objetiva que é refletida, transformada em imagem por nossa sensação; afirmo que não há meio de se saber tal coisa”. Era Alexandre quem dissecava a despretensiosa declaração. Pedro olhou curiosamente aquele homem, que com seu sorriso desdentado, lhe oferecia um cigarro. Pegou. Valdir começou a cantar, Sol Quente a rir. Pedro levantou-se e espiou o corredor. Para sua surpresa as garotas que saltitavam no sonho, agora todas de jaleco branco e crachá de estagiárias em psicologia, convidavam aos recém acordados para a reunião matinal. Voltou ao quarto, e pedindo atenção de todos perguntou: Porque Sol Quente dorme no chão?
Quem esclareceu de um rompante só foi Alexandre: - É que Adão, o negro do beliche de cima, conta que esquartejaram o cavalo dele por vingança e desde então Amílcar Pelegrino, o “Sol Quente”, tem pesadelos com os pedaços do bicho que diz estarem em cima de sua cama todas as noites, por isso dorme no piso gelado e quando saímos para a recreação Sol Quente fica sempre na nesga do “astro rei” que banha o pátio reservado para os internos do 4º E na esperança de compensar a friagem noturna, repetindo ininterruptamente: Sol quente é bom, sol quente é bom... ! Adão aparentemente desatento em seu olhar sampaku disse: Quero chocolate, você tem chocolate? A pergunta era para Pedro que respondeu com outra pergunta: Quero bebida, você tem bebida? O homem disse não e Pedro completou: Então estamos quites, também não tenho chocolate. Certo, falou Adão, serenamente. Depois da conversa surrealista decidiu seguir a máxima; “Em Roma, como os romanos”. Sabia que poucos ali se encontravam em condições de desenvolver um raciocínio linear necessário para qualquer diálogo. Porém compreendera o drama de Sol Quente e se surpreendera com a desenvoltura verbal de Alexandre que justificava sua loucura pelo excesso de “estudo” e por incrível que pareça, era formado em Filosofia . Tudo que foi dito ou feito de bom pelo homem, foi feito por mim. Declarou Alexandre, dizendo-lhe que parafraseava Espinosa, - inquisidor geral da Espanha, cardeal, bispo e ministro da corte de Filipe II, que viveu de 1502 a 1572 -. Orgulhoso de seu conhecimento completou; Todo o louco que acredita ser Jesus, Napoleão ou qualquer personalidade histórica, inconscientemente é uma parte viva do pensamento de Espinosa. Eu sou a síntese! Constatando o sério problema mental de Alexandre pensou o quão confortável seria se em momentos de crise pudesse transferir a responsabilidade para personalidades grandiosas. Depois da prévia de como ia ser sua estadia naquele local, teve a impressão que um pouco abaixo de sua garganta um tijolo negava-se a descer para o estômago. Esbanjando prepotência, dois enormes atendentes estilo “roupeiro de portas abertas” ordenaram que fossem imediatamente ao refeitório, pois quase terminara o horário do café. Não gostando da maneira truculenta das duas figuras, no trajeto para o refeitório, Pedro pensava se os cinco do quarto não venceriam os dois arrogantes na porrada. Difícil, pois além do “grupo de oito”, (equipe formada por oito internos de outra galeria, utilizado para imobilizar revoltosos), entre enfermeiros, auxiliares e atendentes só no 4º E eram vinte, um mais forte que o outro. Já os internos somavam sessenta, mas a grande maioria incapacitada e os mais salientes devidamente dopados. A fila para o café realmente era uma galeria de horrores, seres humanos inchados, desdentados, deformados, cabelos picotados ou raspados por eles próprios com velhos aparelhos de barba, outros nus e todos num ritmo que se resumia em trocar o peso do corpo de uma perna para a outra num balanço doentio. Movimento causado por medicações da família dos neurolépticos, que se por um lado entorpece o paciente em contrapartida causa imensa agitação interior. Daí o balanço de Sol Quente, Alexandre, Gringo, Valdir e Adão e todos os outros que Pedro ainda não conhecia. O homem começou a imitá-los para que os funcionários não notassem que novamente havia escondido sob a língua e cuspido os remédios no banheiro. Num ambiente como aquele tudo podia acontecer. O cenário lhe trazia à memória filmes sobre manicômios, mas, com a diferença de que ali não havia dublês e nem atores representando. Quando já estava quase entrando no refeitório, um enorme paciente gordo conhecido como Brastemp enfiou-se na sua frente abrindo espaço a cotoveladas e acertando-lhe uma no rosto. O seu metro e oitenta e três de altura, alcançava apenas o ombro de Brastemp, com o nariz sangrando reclamou a um enfermeiro que ostentava uma bandagem na cabeça. Este o aconselhou a aceitar a ”lei do mais forte”, dizendo que afinal de contas, ali, Pedro era o novato. Brastemp que ouvira a queixa o encarava sorrindo debochadamente, era um sósia do Brutus, vilão dos desenhos animados do Popeye, suas sobrancelhas pareciam um grosso risco de caneta hidrocor. Instintivamente e com os nervos a flor da pele, conseqüência imediata da falta de álcool, Pedro deu tal murro na boca de Brastemp que os ossos de sua mão chegaram a ranger. No tombo o gigante derrubou dois outros que estavam na fila. Ao levantar-se veio em direção a Pedro espumando pela boca ensangüentada, com uma tapona deixou estendido um funcionário que tentou segurá-lo. Pedro o esperou simulando com os braços que ia repetir o mesmo golpe, quando a distância se fez exata bateu um “pênalti” com bico do pé direito na genitália do doente mental. Covardia ou sobrevivência? Não teve tempo para chegar a uma conclusão, apenas sentiu o agulhasso da seringa com “anatensol” e logo pessoas lhe carregando ao quarto, amarrando-o na cama, seu corpo todo formigando. Tentou falar, mas seus ouvidos identificaram apenas sons pastosos. Ainda teve tempo de ouvir a frase dita pelo enfermeiro com o curativo na cabeça: Bem vindo ao 4ºE.
Durante a impregnação, Pedro sofreu terríveis pesadelos, num deles; visualizava de dentro de uma cova sem caixão, conhecidos, alguns muito tristes, mas a grande maioria aparentando alívio e até satisfação por sua morte. Sonhos desconexos e “viagens” que misturavam imaginação e realidade faziam parte do repertório que dominava seu cérebro. Com um mal estar ininterrupto fez as necessidades fisiológicas na roupa em função da incapacidade motora. Nem nos piores dias de seu alcoolismo havia sentido tamanho sentimento de impotência física e vazio existencial. "O sonho acabou"! Teve medo de enxergar John Lennon, mas quem dissera a frase fora Dna. Enir, atendente de enfermagem que há dias pacientemente lhe dava banho e comida na boca. Os olhos ardiam-lhe pela forte claridade das lâmpadas. Aos poucos conseguiu ajustar o foco do olhar no rosto da mulher. Era loira artificial, meia idade, gorda de aspecto simpático. A falta de equilíbrio dificultava todos os movimentos, mal conseguia se manter sentado no banco coletivo do irrequieto refeitório tal era a potência da medicação usada para imobilizar os rebeldes. Medicação que começava a desempreguinar-se de Pedro. Perguntando a atendente porque não conseguia segurar a colher, (únicos talheres permitidos no 4º E). Dna. Enir disse-lhe que há dias besuntava-se todo com a comida, tropicava com a bandeja e vivia em estado de semiconsciência, impregnado, no jargão psiquiátrico. Tinha várias perguntas a fazer, mas resolveu citar Augusto dos Anjos: Meu cérebro rola dentro do coco, será que estou ficando louco? Calma que logo ficarás bem. Tranqüilizou-o Dna. Enir . Claudicante, caminhou pela galeria em direção ao quarto, no caminho Alexandre oferecendo-lhe cigarros numa espécie de boas vindas ao ”ressuscitado”, contou orgulhosamente que durante seu período de impregnação Brastemp passara por doze sessões de eletrochoques. Era o ano 2005 e Pedro não entendia como ainda usavam essa “terapia”. Horrorizado pela certeza de estar no pior manicômio de todos que conhecera tentava manter o cigarro na boca mordendo o filtro com os dentes. Sentado na cama que agora tinha lastro, fronhas e lençóis limpos encontrou todos os componentes do quarto. Situação anormal na galeria, pois durante o dia com exceção dos impregnados, amarrados nas camas ou imobilizados como “múmias”, cruel técnica de enfaixar a pessoa com ataduras molhadas, que apertam mais quando secam deixando só o rosto descoberto , todos os pacientes passavam o dia fumando e caminhando de um extremo ao outro da ala de contenção. Sol Quente, sem o tradicional riso nervoso fumava em silêncio. Novamente esperavam que ele dissesse algo. Atacou com a famosa frase de Ernesto Guevara: “Temos que endurecer, mas sem perder a ternura”.Com exceção de Alexandre ninguém conhecia a frase e como falava em endurecer, Sol Quente começou a masturbar-se. Valdir o obrigou a sair do quarto aos empurrões. Sol Quente caiu e bateu a cabeça na quina do beliche de ferro. Gritaria geral. Pedro tentou acalmar os ânimos, mas já era tarde. O grupo “dos oito” fora chamado para eletrochoques em Valdir a mando da Dra.Claudia responsável pela galeria. Formado por oito fortes pacientes usando uma farda diferenciada, o grupo dos oito tomava de assalto qualquer dependência do hospício e imobilizava o rebelde. Alexandre que assistia a tudo ao lado de Pedro, falou; Já que citaste Che Guevara, também vou citar; A farda modela o corpo, mas atrofia a mente. Só que nesse caso, a mente a ser atrofiada será a do Valdir, respondeu Pedro. O filósofo começou a rir nervosamente expondo sua dentadura banguela. Pedro estirou-se na cama, mas não conseguiu dormir apesar do resquício de impregnação. No escuro do quarto, apavorado, acompanhou todos os gritos, sussurros e surtos psicóticos da pior ala da instituição. O enfermeiro o acordou de um cochilo sem sonho informando que a Dra. Claudia lhe aguardava para consulta.
A sala ficava ao lado da enfermaria no início do corredor. Emerson abriu a porta olhando-o enviesado. Muito prazer seu Pedro pode sentar-se, disse a médica. Cabelo escuro deveria ter pouco mais de vinte cinco anos, bonita, cenho franzido. Como está se sentindo? Perguntou - lhe com o olhar forçosamente firme, usava palavreado seco, tentando demonstrar autoridade. Autoridade que realmente tinha dentro do 4º E. Forjada pelo medo. Desde sua adolescência Pedro havia conversado com pelo menos uma dezena de psiquiatras. E todos eles eram mais seguros que a jovem doutora Claudia. Tenho informações que o senhor não vem tomando a medicação. Senhora, disse Pedro, há anos faço análise psiquiátrica e sei que os medicamentos neurolépticos causam terríveis efeitos colaterais e são indicados à pacientes portadores de esquizofrenia, doença que não tenho, sofro de dependência química e alcoolismo cujo tratamento é única e exclusivamente a completa abstinência. O senhor está querendo ensinar como devo diagnosticar e tratar meus pacientes. Disse-lhe, com os olhos saltando das órbitas. Pedro sentindo que ia piorar sua situação tentou contemporizar. Não doutora, apenas transmito o consenso de vários outros médicos, pois é nossa primeira consulta e... Para seu juízo senhor, disse a médica interrompendo-o, já que não se recorda, eu o avaliei no momento de sua internação, onde concluí; estado de demência, agressividade compulsiva, manifestações suicidas e monólogo subjetivo. ”Monólogo subjetivo”, pensou, devia estar falando sozinho e o pior é que não se lembrava do episódio. Era o famoso “apagamento alcoólico”. Ficou em silêncio tentando formular uma réplica, mas Claudia concluiu: Por essas razões vou aumentar sua medicação, a consulta está encerrada, nos vemos amanhã, tenha um bom dia senhor Pedro. Emerson que ouvira a conversa em pé atrás da cadeira abriu a porta para que o interno saísse. O atendente que não costumava falar com pacientes a não ser para dar instruções, mas com um movimento de cabeça indicou que Pedro entrasse na enfermaria para um bate-papo. Ô Pedro, notei que tu de louco não tens nada és um cara inteligente e eu já vi muitos caras inteligentes saírem daqui completamente loucos mesmo, veja o exemplo do Alexandre. Essa “doutorazinha” é metida a besta. Faço um trato contigo, se não causares mais brigas, especialmente com funcionários, (não se recordava da cadeirada no enfermeiro), e ajudares a manter a tranqüilidade aqui na Mario Martins, (assim se chamava oficialmente o 4º E), te darei a medicação via oral e farei “olho branco” para cuspires fora. Pedro concordou de imediato. Saindo para o corredor Alexandre o aguardava para lhe dar um cigarro. Pedro já se considerava um rato de hospício depois de tantas internações. Mas surpreendeu-se ao passar em frente ao banheiro e ver doentes dando banho, enxugando e vestindo outros doentes mais “atrapalhados”. Alexandre que o acompanhava contou que os funcionários, com exceção de Dna.Enir que inclusive era discriminada pelos colegas, tinham nojo de cumprir essas tarefas. O homem notou que as únicas pessoas que não negligenciavam solidariedade no 4º E, eram aquelas que também não a recebiam. Sentados num banco no meio da galeria, Valdir, “robotizado” pelos choques combinados com cavalares doses de remédios, desafinava interpretando músicas românticas sob o olhar perdido de Adão. Perdido, porém esperto, pois já fazia uma troca com um outro paciente de uma surrada calça jeans por duas grandes barras de chocolate trazidas por familiares nos escassos dias de visita. Fumavam assistindo o interminável vai-e-vem de internos quando soou a sirene. Emerson meio corpo para o corredor escorado no balcãozinho da porta, gritou: Terapia ocupacional! Oba! Exclamou Alexandre começando a declamar um poema; A volúpia carnal é uma experiência dos sentidos, análoga ao simples olhar ou à simples sensação com que um belo fruto enche a língua. É uma grande experiência sem fim que nos é dada; um conhecimento do mundo; a plenitude e o esplendor de todo o saber. A professora é muito gostosa e é por isso que a homenageio com Rainer Maria Rilke, grande poeta lírico nascido em Praga, antiga Checoslováquia, viveu de 1875 a 1926. A erudição de Alexandre causava curiosidade em Pedro. Não entendia como Alexandre sujeito a tratamento com choques elétricos, onde quebrara os dentes da frente no impacto dos maxilares pela violenta descarga, podia contar com a memória para citar poemas. Foram todos para a grande sala no fim do corredor, tinha uma televisão desligada e presa à parede num dos cantos do recinto, suspensa dentro de uma caixa com tela protetora de arame para que internos não a quebrassem. A mesa coberta por folhas de papel em branco ocupava o centro da sala. Lorena entrou sorrindo e distribuindo lápis de cera de uma pasta que trazia na mão. Lápis que vários doentes começaram a mastigar assim que receberam. Sol Quente chegou atrasado, curativo na cabeça, nu, e com o pênis ereto. Motivo pelo qual foi conduzido pelo grupo dos oito para a sala de “mumificação”. Lorena era formada em Artes e ministrava Arte Terapia na Instituição. Alexandre tinha razão. Lorena não era bonita, era linda com seus olhos azuis, lábios carnudos, corpo escultural e muito inteligente. Sempre que se aproximava de Pedro, o perfume delicado da professora acelerava-lhe os batimentos cardíacos. Era o sonho erótico dos profissionais da casa e com certeza de todos os internos que ao fim da aula se revezavam nos banheiros para a masturbação. Como não tinha habilidade para desenho ou pintura resolveu escrever na folha que Lorena lhe dera e em todos os horários de arte terapia ele escrevia. E por vezes debatia com a artista os assuntos que abordava em seus textos. Em conseqüência destas conversas desenvolveram uma afinidade especial, afinidade que ficou notória na instituição quando esta se ofereceu para retirar os pontos da sobrancelha já cicatrizada de Pedro num hospital repleto de médicos e enfermeiros, roçando levemente seus seios no rosto do interno.
Aos exatos sessenta e cinco dias de muitas brigas, sessões de eletrochoques, ”mumificações”, amarrações em cama, berros noturnos e uma infinidade de horrores aos quais Pedro passara quase incólume, tinha em mãos o esboço de um conto. Lorena que gostava do que fazia, ao contrário da Dra. Claudia que de mau humor aumentava a medicação de internos baseada em seus equivocados diagnósticos, foi a grande responsável pela escrita de Pedro, inclusive o autorizando a sair da galeria para escrever na paz da biblioteca onde devorou quase todos os livros lá existentes como as obras completas de Freud e Jung e outros autores indicados por Alexandre e por ela. Além é claro, de servir de inspiração para masturbações memoráveis onde às vezes até a “malvada” Dra. Claudia era homenagiada. O atendente Emerson que vivia a contradição de no íntimo condenar os procedimentos medievais da instituição, mas como funcionário ter de executá-los, foi quem preservou sua saúde mental, evitando que ele ingerisse os remédios e levasse eletrochoques, (onde dois bastonetes ligados a uma máquina são pressionados contra as têmporas do paciente imobilizado descarregando choques elétricos na caixa craniana), componentes principais daquela verdadeira fábrica de loucos. Quando a Dra. Claudia saiu em férias, Márcia sua substituta após duas entrevistas assinou a alta de Pedro. Sairia numa quinta-feira. Na última entrevista Pedro aproveitando um vacilo da médica despejou dentro do garrafão de água mineral, água que só funcionários e médicos podiam beber, todos os remédios que ao invés de por no lixo havia moído e armazenado durante sua estadia. Iriam provar do próprio veneno. Na porta de saída da ala vários internos esperavam para despedirem-se de Pedro. Com exceção do remédio Anatensol, punição pela briga com Brastemp, passara toda a temporada naquele inferno sem ingerir nem uma aspirina. Sentia-se ótimo pela primeira vez em anos. Ciente que qualquer internação motivada por álcool ou drogas, salvo casos que já apresentem complicações orgânicas ou psíquicas acentuadas, deve ser tratada sem o uso de remédios. Dirigindo-se a esperada liberdade, no meio do corredor, Adão, nu da cintura para baixo defecava em sua própria mão e arremessava os excrementos em Brastemp que sentado no banco não esboçava qualquer reação pois se encontrava impregnado. Manifestação estranha de solidariedade para com Pedro que via a cena com tristeza pela situação de ambos. Alexandre que tinha provocado grande confusão tentando proteger Dna. Enir de um outro paciente em surto psicótico agredindo-o, estava impregnado e proibido de fumar. Chorando e rindo ao mesmo tempo, abraçou Pedro e com voz pastosa disse: Pedro, tu és feito de pedra e a partir de ti construirei minha igreja, palavras de Jesus ao apóstolo Simão Pedro, balbuciou derramado em lágrimas. Tentando animá-lo o homem citou o pintor Pablo Picasso; Por que Platão declarou que os poetas devem ser expulsos da República? Justamente porque todo poeta, todo artista, é um ser anti-social. Sua frase não surtiu o efeito desejado, pois Alexandre normalmente bem humorado continuou a chorar com mais ênfase, talvez por concordar com Platão. Valdir cantava; “... eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo...” música de Roberto Carlos. Tema que para Pedro não fazia sentido pois não tinha cachorro, muito menos um que sorrisse e nem casa para chegar em frente ao portão. Peculiaridade da doença do alcoolismo que ao inverso de todas as outras que une amigos e parentes em torno do enfermo, essa desagrega a família, dilapida qualquer patrimônio e afasta os companheiros. Emerson assistindo a tudo escorado no balcãozinho lhe fez uma continência ao estilo militar que foi retribuída com um leve aceno de cabeça. Sol quente é bom, sol quente é bom, repetia Sol Quente, batendo a mão em seu ombro. Pedro, era a primeira vez que ouvia Sol Quente pronunciar um nome, vou ficar com a sua cama, lá o bicho não vai. Dizia ele entre repetições de “sol quente é bom”. Ficou aliviado em saber que de agora em diante ele esperaria a morte pelo menos deitado em uma cama e não mais seminu tremendo de frio no chão gelado do quarto. Gringo, ao qual nunca dera atenção, o abraçando fortemente falou-lhe ao pé do ouvido; também li todos os livros da biblioteca, fez uma pausa e mudando de assunto completou: deixe de ser louco e seja apenas o Pedro, essa vida de manicômio não é pra ti, é mil vezes mais fácil enfrentar as dificuldades da vida do que anular-se em um hospício. Procure manter-se sóbrio, pois se voltares talvez não saias mais. De onde menos esperava as palavras saíam sábias. Baseado no lúcido conselho do Gringo concluiu que este também não tomava a medicação. Ia saindo com a certeza que deveria ter conversado mais com o velho. Quando a última tranca da reforçada porta se abriu, Lorena vinha chegando para as consultas, seus olhos se miraram por intermináveis segundos, Pedro quase quis continuar internado, ninguém disse palavra, o homem deu três passos e ouviu o barulho dos cadeados da porta fechando o 4º E as suas costas. O difícil seria definir se o inferno ficava do lado de dentro ou de fora daquela instituição.
Eduardo Simch
Fim

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Bochincho


Bochincho 
Autoria: Jayme Caetano Braun
A um bochincho - certa feita,
Fui chegando - de curioso,
Que o vicio - é que nem sarnoso,
nunca pára - nem se ajeita.
Baile de gente direita
Vi, de pronto, que não era,
Na noite de primavera
Gaguejava a voz dum tango
E eu sou louco por fandango
Que nem pinto por quireral.

Atei meu zaino - longito,
Num galho de guamirim,
Desde guri fui assim,
Não brinco nem facilito.
Em bruxas não acredito
'Pero - que las, las hay',
Sou da costa do Uruguai,
Meu velho pago querido
E por andar desprevenido
Há tanto guri sem pai.

No rancho de santa-fé,
De pau-a-pique barreado,
Num trancão de convidado
Me entreverei no banzé.
Chinaredo à bola-pé,
No ambiente fumacento,
Um candieiro, bem no centro,
Num lusco-fusco de aurora,
Pra quem chegava de fora
Pouco enxergava ali dentro!

Dei de mão numa tiangaça
Que me cruzou no costado
E já sai entreverado
Entre a poeira e a fumaça,
Oigalé china lindaça,
Morena de toda a crina,
Dessas da venta brasina,
Com cheiro de lechiguana
Que quando ergue uma pestana
Até a noite se ilumina.

Misto de diaba e de santa,
Com ares de quem é dona
E um gosto de temporona
Que traz água na garganta.
Eu me grudei na percanta
O mesmo que um carrapato
E o gaiteiro era um mulato
Que até dormindo tocava
E a gaita choramingava
Como namoro de gato!

A gaita velha gemia,
Ás vezes quase parava,
De repente se acordava
E num vanerão se perdia
E eu - contra a pele macia
Daquele corpo moreno,
Sentia o mundo pequeno,
Bombeando cheio de enlevo
Dois olhos - flores de trevo
Com respingos de sereno!

Mas o que é bom se termina
- Cumpriu-se o velho ditado,
Eu que dançava, embalado,
Nos braços doces da china
Escutei - de relancina,
Uma espécie de relincho,
Era o dono do bochincho,
Meio oitavado num canto,
Que me olhava - com espanto,
Mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio,
Pois era dele a pinguancha,
Bufando e abrindo cancha
Como dono de rodeio.
Quis me partir pelo meio
Num talonaço de adaga
Que - se me pega - me estraga,
Chegou levantar um cisco,
Mas não é a toa - chomisco!
Que sou de São Luiz Gonzaga!

Meio na volta do braço
Consegui tirar o talho
E quase que me atrapalho
Porque havia pouco espaço,
Mas senti o calor do aço
E o calor do aço arde,
Me levantei - sem alarde,
Por causa do desaforo
E soltei meu marca touro
Num medonho buenas-tarde!

Tenho visto coisa feia,
Tenho visto judiaria,
Mas ainda hoje me arrepia
Lembrar aquela peleia,
Talvez quem ouça - não creia,
Mas vi brotar no pescoço,
Do índio do berro grosso
Como uma cinta vermelha
E desde o beiço até a orelha
Ficou relampeando o osso!

O índio era um índio touro,
Mas até touro se ajoelha,
Cortado do beiço a orelha
Amontoou-se como um couro
E aquilo foi um estouro,
Daqueles que dava medo,
Espantou-se o chinaredo
E amigos - foi uma zoada,
Parecia até uma eguada
Disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato
Dum bochincho - quando estoura,
Tinidos de adaga - espora
E gritos de desacato.
Berros de quarenta e quatro
De cada canto da sala
E a velha gaita baguala
Num vanerão pacholento,
Fazendo acompanhamento
Do turumbamba de bala!

É china que se escabela,
Redemoinhando na porta
E chiru da guampa torta
Que vem direito à janela,
Gritando - de toda guela,
Num berreiro alucinante,
Índio que não se garante,
Vendo sangue - se apavora
E se manda - campo fora,
Levando tudo por diante!

Sou crente na divindade,
Morro quando Deus quiser,
Mas amigos - se eu disser,
Até periga a verdade,
Naquela barbaridade,
De chínaredo fugindo,
De grito e bala zunindo,
O gaiteiro - alheio a tudo,
Tocava um xote clinudo,
Já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim,
Balanceei a situação,
- Já quase sem munição,
Todos atirando em mim.
Qual ia ser o meu fim,
Me dei conta - de repente,
Não vou ficar pra semente,
Mas gosto de andar no mundo,
Me esperavam na do fundo,
Saí na Porta da frente...

E dali ganhei o mato,
Abaixo de tiroteio
E inda escutava o floreio
Da cordeona do mulato
E, pra encurtar o relato,
Me bandeei pra o outro lado,
Cruzei o Uruguai, a nado,
Que o meu zaino era um capincho
E a história desse bochincho
Faz parte do meu passado!

E a china - essa pergunta me é feita
A cada vez que declamo
É uma coisa que reclamo
Porque não acho direita
Considero uma desfeita
Que compreender não consigo,
Eu, no medonho perigo
Duma situação brasina
Todos perguntam da china
E ninguém se importa comigo!

E a china - eu nunca mais vi
No meu gauderiar andejo,
Somente em sonhos a vejo
Em bárbaro frenesi.
Talvez ande - por aí,
No rodeio das alçadas,
Ou - talvez - nas madrugadas,
Seja uma estrela chirua
Dessas - que se banha nua
No espelho das aguadas