domingo, 8 de março de 2009

Van Gogh por Antonin Artaud


Em fevereiro de 1947 Artaud foi ver a mostra de Van Gogh no museu de l’Orangerie, no qual estavam expostas 173 obras do grande pintor holandês. Pouco antes saíra no jornal Arts um artigo de um psiquiatra focalizando Van Gogh sob um ponto de vista clínico intitulando-o inclusive de degenerado. De volta da exposição Artaud pôs-se a escrever imediatamente seu texto. Consta que o teria escrito em dois dias. Na verdade, a maior parte foi feita em uma semana. Foi publicado em setembro de 1947 e logo em seguida recebeu o prêmio Sainte-Beuve; na época, o principal prêmio literário para ensaios na França. Não deixa de ser uma ironia o fato do marginalizado Artaud receber um prêmio dessa importância e de viver uma espécie de consagração - seus textos eram publicados logo depois que terminava de escrevê-los e as Cartas de Rodez já estavam na segunda edição - no fim da vida, quando já definhava às vésperas da morte. Van Gogh é um dos textos mais bonitos, de maior intensidade poética de Artaud. Há uma espécie de síntese, de junção do texto corrido das Cartas e da batida mais compassada, mais ritmada do Momo e de Ci-Gît. Quando o assunto era algum outro “maldito” hiper-romântico, Artaud escrevia apaixonadamente. Isso pode ser visto também na sua carta sobre Lautréamont, de 1946, e no seu texto sobre Gérard de Nerval.
Fiama Hasse Pais Brandão

Retrato e a fotografia do pintor.
Van Gogh: o Suicidado Pela Sociedade
(trechos)
Pode-se falar da boa saúde mental de van Gogh, que em toda sua vida apenas assou uma das mãos e, fora disso, limitou-se a cortar a orelha esquerda numa ocasião, num mundo no qual diariamente comem vagina assada com molho
verde ou sexo de recém-nascido flagelado e triturado, assim que sai do sexo materno. E isso não é uma imagem, mas sim um fato abundante e cotidianamente repetido e praticado no mundo todo. E assim é que a vida atual, por mais delirante que possa parecer esta afirmação, mantém sua velha atmosfera de depravação, anarquia, desordem, delírio, perturbação, loucura crônica, inércia burguesa, anomalia psíquica (pois não é o homem, mas sim o mundo que se tornou anormal), proposital desonestidade e notória hipocrisia, absoluto desprezo por tudo que tem uma linhagem e reivindicação de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de uma primitiva injustiça; em suma, de crime organizado. Isso vai mal porque a consciência enferma mostra o máximo interesse, nesse momento, em não recuperar-se da sua enfermidade. Por isso, uma sociedade infecta inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas, cujas faculdades de adivinhação a incomodavam. Gérard de Nerval não estava louco, mas o acusaram de estar louco para desacreditar certas revelações fundamentais que estava em vias de fazer; e, além de acusá-lo, certa noite golpearam sua cabeça, golpearam-no fisicamente para que esquecesse os fatos monstruosos que ia revelar e que, por causa deste golpe, passaram do plano mental para o plano supranatural, pois a sociedade toda, conjurada contra sua consciência, mostrou-se naquele momento suficientemente forte para obrigá-lo a esquecer sua verdade. Não, van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao contrário de toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido capaz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do Segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim como os de Napoleão III. Pois a pintura de van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus climas, suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a mesma gravitação
depois da passagem de van Gogh pela Terra. Tanto mais razão para, no plano
social, as instituições se decomporem e a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara louco a Van Gogh. Diante da lucidez ativa de van Gogh, a psiquiatria nada mais é que um antro de gorilas obcecados e perseguidos que só dispõem de uma ridícula terminologia para aplacar os mais espantosos estados de angústia e asfixia humana, uma terminologia digna dos seus cérebros tarados. Com efeito, não existe psiquiatra que não seja um erotômano declarado. E não creio em exceções à regra da inveterada erotomania dos psiquiatras.
........................................................................................................................
E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu ficar louco, no sentido
socialmente aceito, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana. Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras. Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis. Nesse caso, a reclusão não é sua única arma e a conspiração dos homens tem outros meios para triunfar sobre as vontades que deseja esmagar. Além dos feitiços menores dos bruxos de aldeia, há as grandes sessões de enfeitiçamento global das quais participa, periodicamente, a consciência em pânico. Assim, por ocasião de uma guerra, de uma revolução, de um transtorno social ainda latente, a consciência coletiva é interrogada e se questiona para emitir um julgamento. Essa consciência também pode ser provocada e despertada por certos casos individuais particularmente flagrantes. Assim foi que houve feitiços coletivos nos casos de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard, Hölderlin, Coleridge, e também no caso de van Gogh. Podem ser feitos durante o dia, mas geralmente são realizados à noite. Então, estranhas forças são despertadas e levadas à abóbada celeste; a essa espécie de cúpula sombria que, sobre a respiração da humanidade, constitui a venenosa hostilidade do espírito maligno da maioria das pessoas. É assim que as poucas pessoas lúcidas e de boa vontade que se debatem sobre a terra já se viram, em certas horas da noite ou do dia, tragadas pela profundeza de autênticos pesadelos em vigília e rodeadas por uma poderosa sucção, pela poderosa opressão tentacular de uma espécie de magia cívica que logo será vista aparecendo nos costumes de modo mais manifesto. Diante dessa sordidez unânime que de um lado se baseia no sexo e de outro na missa e. outros ritos psíquicos, não há delírio em passear à noite com um chapéu coroado por doze velas para pintar uma paisagem natural; pois como faria o pobre van Gogh para iluminar-se, como tão bem assinalou outro dia nosso amigo, o ator Roger Blin? Quanto à mão assada, trata-se de heroísmo puro e simples; quanto à orelha cortada, pura lógica direta, e repito, um mundo que, cada vez mais, noite e dia, come o incomível para fazer sua maléfica vontade alcançar seus objetivos não tem outra alternativa nessa questão a não ser calar a boca.
POST-SCRIPTUM
Van Gogh não morreu num estado propriamente de delírio, mas por ter sido
corporalmente o campo de batalha de um problema em tomo do qual o espírito iníquo desta humanidade se debate desde as origens. O problema do predomínio da carne sobre o espírito, do corpo sobre a carne ou do espírito sobre ambos. E nesse delírio, onde está o lugar do eu humano? Van Gogh o buscou durante toda sua vida com uma singular energia e determinação, e ele não se suicidou num acesso de loucura, de desespero por não conseguir encontrá-lo, mas, pelo contrário, ele havia conseguido, tinha descoberto o que era e quem era quando a consciência coletiva da sociedade, para puni-lo por ter rompido as amarras, o suicidou. E aconteceu com van Gogh como poderia ter acontecido com qualquer um de nós, por meio de uma bacanal, de uma missa, de uma absolvição ou qualquer outro rito de consagração, possessão, sucubação ou incubação. Assim a sociedade inoculou-se no seu corpo, esta sociedade absolvida, consagrada, santificada e possuída, apagou nele a consciência sobrenatural que acabara de adquirir e, como uma inundação de corvos negros nas fibras da sua árvore interna, submergiu-o num último vagalhão e, tomando seu lugar, o matou. Pois está na lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido viver, nunca ter podido pensar em viver, a não ser como possuído.
O SUICIDADO PELA SOCIEDADE
.................................................................................................................
Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a natureza não-pintada, a porta oculta de um mais-além possível, de uma permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh para um enigmático e sinistro mais-além. Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre, povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez lívido, em todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo. Mas nenhum outro pintor além
de van Gogh teria achado, como ele o fez para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de “banquete faustoso” e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo. E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem dúvida faustosos só para van Gogh, suntuosos augúrios de um mal que já não o afetará? Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse trapo sujo empapado de vinho e sangue. O céu do quadro é muito baixo, aplastrado, violáceo como as margens do raio. A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago. Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu braço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baíxo da tela, seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma sufocação vinda do alto. E contudo o quadro é soberbo. Soberbo, suntuoso e sereno quadro. Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que, desesperado, com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre talhado. Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino. É isso o que mais me surpreende em van Gogh, o mais pintor de todos os pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe, Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático, suas modestas telas, telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões, como se respondessem a um propósito deliberado. Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada, um livro no sofá e está revelado o drama. Quem vai entrar? Será Gaughin ou algum outro fantasma? A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que parece, a linha de demarcação luminosa que separa as duas individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin. Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin. Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até o mito, enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais modestas da vida. De minha parte, penso que tinha absoluta razão. Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade. Basta ter o gênio para saber interpretá-la. O que nenhum pintor havia feito antes do pobre van Gogh, o que nenhum pintor voltará a fazer depois dele, pois acredito que desta vez, hoje mesmo, agora, neste mês de fevereiro de 1947, é a própria realidade, o mito da própria realidade, da própria realidade mítica, que está se encamando. Assim, depois de van Gogh ninguém mais soube mover o grande címbalo, o acorde sobre-humano, perpetuamente sobre-humano pelo qual ressoam os objetos da vida real quando se sabe aguçar suficientemente os ouvidos para escutar as ondas da sua maré crescente. Assim ressoa a luz da lamparina, a luz da lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde ressoa como a respiração de um corpo amante na presença de um corpo de enfermo adormecido. Soa como uma estranha critica, um julgamento profundo e surpreendente cuja sentença van Gogh pode nos deixar adivinhar mais tarde, bem mais tarde, no dia em que a luz violeta da cadeira de palha tiver acabado de submergir o quadro. E não se pode deixar de reparar nessa incisão de luz arroteada que morde as barras da grande cadeira turva, do velho sofá cambaio de palha verde, embora não seja percebida à primeira vista. Pois o foco de luz está dirigido para outro lugar e sua fonte é estranhamente obscura, como um segredo do qual só van Gogh tivesse conservado a chave. E se van Gogh não tivesse morrido com trinta e sete anos? Não chamo a Grande Carpideira para me dizer com quantas supremas obras-primas a pintura teria se enriquecido, pois não consigo acreditar que depois dos Corvos van Gogh viesse a pintar mais alguma coisa. Penso que ele morreu com trinta e sete anos porque já havia, desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico. Pois não foi por sua própria causa, por causa da doença da sua própria loucura, que van Gogh abandonou a vida. Foi sob a pressão do espírito maléfico que, dois dias antes da sua morre, passou a chamar-se doutor Gachet, psiquiatra improvisado e causa direta, eficiente e suficiente da sua morte. Quando releio as canas de van Gogh para seu irmão, convenço-me firmemente que o doutor Gachet, “psiquiatra”, na verdade detestava van Gogh, pintor; e que o detestava como pintor e acima de tudo como gênio. É quase impossível sr ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta, mas é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio. A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença e não provocou, pelo contrário, a doença para assim ter uma razão de ser; mas a psiquiatria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram preservar o mal como fonte da doença e que assim produziram do seu próprio nada uma espécie de Guarda Suíça para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na origem do gênio. Em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas e que só no delírio consegue encontrar uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou. O doutor Gachet não chegou a dizer a van Gogh que estava ali para endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdiére, médico-chefe do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar minha poesia), porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na paisagem pra evitar a tortura de pensar. No entanto, assim que van Gogh voltava as costas, o doutor Gachet lhe fechava o interruptor do pensamento. Como quem não quer nada, mas com esse franzir a cara aparentemente inocente e depreciativo no qual todo o inconsciente burguês da terra inscreveu a antiga força mágica de um pensamento cem vezes reprimido. Fazendo assim, o doutor Gachet não só proibia os malefícios do problema, mas também a inseminação sulfurosa, o tormento da punção que gira na garganta da única passagem com a qual van Gogh tetanizado, van Gogh suspenso sobre o abismo da respiração, pintava. Pois van Gogh era uma sensibilidade terrível. Para convencer-se basta dar uma olhada no seu rosto, sempre ofegante e, sob alguns aspectos, também um enfeitiçador rosto de açougueiro. Como o de um antigo açougueiro, agora tranqüilo e aposentado dos negócios, este rosto em sombras me persegue. Van Gogh se auto-retratou em várias telas que, por melhor iluminadas que estivessem, sempre me deram a penosa impressão de que havia uma mentira ao redor da luz, que haviam retirado de van Gogh uma luz indispensável para abrir e franquear seu caminho dentro de si. E esse caminho, certamente, não era o doutor Gachet o mais capacitado para indicá-lo. Pois, como já disse, em todo psiquiatra vivente há um sórdido e repugnante atavismo que lhe faz ver em todo artista e todo gênio à sua frente um inimigo. E sei que o doutor Gachet deixou para a história, com relação a van Gogh, atendido por ele e que terminou por suicidar-se na sua casa, a impressão de ter sido seu último amigo na terra, uma espécie de consolador providencial. No entanto, estou cada vez mais convencido que é ao doutor Gachet de Auvers-sur-Oise que van Gogh ficou devendo aquele dia, o dia em que se suicidou em Auvers-sur-Oise; ficou devendo, repito, ter deixado a vida, pois van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de lucidez superior, o que lhes permite, em qualquer circunstância, ver mais além, infinita e perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos. Quero dizer mais além da consciência que a consciência habitualmente guarda dos fatos. No fundo desses seus olhos sem pestanas de açougueiro, van Gogh dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria que tomam a natureza como objeto e o corpo humano como vasilhame ou crisol. E sei que o doutor Gachet sempre achou que isso cansava van Gogh. O que no doutor não era o resultado de uma simples preocupação médica, mas a manifestação de uma inveja tão consciente quanto inconfessada. Pois van Gogh tinha chegado a esse estágio de iluminismo no qual o pensamento em desordem reflui diante das descargas invasoras da matéria e no qual pensar já não é consumir-se e nem sequer é e no qual nada mais resta senão juntar pedaços do corpo, ou seja ACUMULAR CORPOS Já não é mais o mundo do astral, é o mundo da criação direta que é recuperado desse modo, mais além da consciência e do cérebro. E nunca vi um corpo sem cérebro fatigar-se por causa de telas inertes.
Suportes do inerte - essas pontes, esses girassóis, esses teixos, esses olivais, essas pilhas de feno. já não se movem. Estão congelados. Porém, quem poderia sonhá-los mais duros sob o traço seco que põe a descoberto seu impenetrável estremecimento? Não, doutor Gachet, uma tela nunca fatigou ninguém. São as forças de um louco em repouso, não transtornado. Eu também estou como o pobre van Gogh: parei de pensar, mas a cada dia dirijo mais de perto formidáveis ebulições internas e gostaria de ver algum terapeuta qualquer vir repreender-me porque me fatigo.
.....................................................................................................................
No momento de escrever essas linhas vejo o rosto vermelho ensangüentado do pintor vir na minha direção, numa muralha de girassóis eviscerados, numa formidável combustão de fagulhas de jacinto opaco e relvas de lápislázuli. Tudo isso no meio de qualquer coisa como um bombardeio meteórico de átomos em que cada partícula se destaca, prova que van Gogh concebeu suas telas como pintor, apenas e unicamente como pintor, mas um pintor que era exatamente por isso um formidável músico. Organista de uma tempestade suspensa que ri na límpida natureza, uma natureza pacificada entre duas tempestades ainda que, como o próprio van Gogh, mostre claramente o que está para acontecer. Depois de termos visto isso, podemos dar as costas a qualquer tela pintada que já não terá mais o que nos dizer. A tempestuosa luz das telas de van Gogh começa seu sombrio recitativo no momento exato em que deixamos de contemplá-la.
Exclusivamente pintor, van Gogh, e nada mais, nada de filosofia, nada de mística, nada de rito, nada de psicurgia nem de liturgia, nada de história, nada de literatura nem de poesia, esses girassóis de ouro bronzeado são pintados; estão pintados como girassóis e nada mais, mas para entender agora um girassol natural, é obrigatório passar por van Gogh, assim como para entender uma tempestade natural, um céu tempestuoso, uma planície da natureza, de agora em diante é impossível não voltar a van Gogh. Uma tempestade como essa caía sobre o Egito ou sobre as planícies da Judéia semita; talvez houvesse trevas semelhantes na Caldéia, Mongólia ou nas montanhas do Tibet, as quais, pelo que sei, continuam no mesmo lugar. E, no entanto, quando contemplo essa planície de trigo ou pedra, branca como um ossário enterrado, sobre a qual pesa aquele velho céu violáceo, não consigo mais acreditar nas rnontanhas do Tibet. Pintor, não mais que pintor, van Gogh adotou meios de pintura pura e nunca os degradou, quero dizer que, para pintar, limitou-se a usar os recursos que a pintura lhe oferecia. Um céu tormentoso, uma planície branca como cal, telas, pincéis, seus cabelos ruivos, tubos, sua mão amarela, seu cavalete, ainda que todos os lamas do Tibet sacudam sob suas roupas o apocalipse que prepararam, van Gogh nos terá feito sentir antecipadamente o cheiro do seu peróxido de nitrogênio numa tela que contém uma dose suficiente de catástrofe para obrigarnos a nos orientar. Um dia ele decidiu não degradar o tema; mas, quando se vê um van Gogh, já não se pode acreditar que haja algo menos degradável que o tema do quadro. Na mão de van Gogh, o tema de uma lamparina acesa num sofá de palha com uma armação violácea diz muito mais que toda a série das tragédias gregas ou dos dramas de Cyril Turner, de Webster ou de Ford que, além disso, até hoje não foram encenados. Sem querer fazer literatura, é verdade que vi o rosto de van Gogh, vermelho de sangue na explosão das suas paisagens, vir a mim, kohan, taver, tensur, purtan, num incêndio, num bombardeio, numa explosão para vingar a pedra de moinho que o pobre van Gogh, o louco, teve que carregar durante toda sua vida. O fardo de pintar sem saber por quê ou para quê. Pois não é para este mundo, nunca é para esta terra onde todos, desde sempre, trabalhamos, lutamos, uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalo e nojo e onde fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido enfeitiçados e finalmente nos suicidamos como se não fôssemos todos, como o pobre van Gogh, suicidados pela sociedade!
(Escritos de um louco,Antonin Artaud)

Campo de Trigo com Corvos
Vincent van Gogh, 1890
óleo em tela
50,5 × 103 cm
Van Gogh Museum, Amsterdam

Um comentário:

Anônimo disse...

Por que nao:)