segunda-feira, 27 de julho de 2009

O 4º E - Capítulo I


Os sete pontos na sobrancelha ainda doíam quando a ambulância o deixou na instituição. Pedro ia para seu terceiro internamento por álcool e drogas, sentia que as coisas não iam bem e que seu horizonte era nebuloso. Na chegada ao hospício, bêbado brigou com um enfermeiro e em consequência foi direto para a ala de contenção, o famigerado 4°E. A ala de contenção do hospital psiquiátrico abrigava pacientes com histórico de violência, tentativa de suicídio, dependência química pesada e graves doenças mentais, além de servir de trânsito para presos do manicômio judiciário a espera de audiências e menores infratores que participaram de motins em suas instituições correcionais. Depois de medicado custou a achar o dormitório que era um dos últimos da grande galeria. No recinto havia uma janela gradeada por fora de onde pendiam trapos atirados por internos da “Freud”, ala que ocupava o andar superior. Havia três beliches e duas camas de ferro, ao lado da porta um beliche com a cama de baixo desocupada, porém sem lastro nem colchão. Forte cheiro de urina mal disfarçado por desinfetante. Na enfermaria o atendente lhe dera cobertores, lençóis e um travesseiro, além de ordenar que tomasse banho e vestisse o puído uniforme do 4º E, recomendando-lhe silêncio e ressaltando em tom ameaçador que ali havia regras. Na impossibilidade de dormir no chão úmido e gelado o homem voltou até a sala da enfermaria no início do corredor. Emerson, o enfermeiro, fazia anotações em um fichário. Quando o viu quis logo saber o porquê de este não estar dormindo, Pedro respondeu que não havia colchão nem lastro na cama. O enfermeiro, levantando-se e abrindo a meia porta estilo balcão mandou o interno entrar, e disse em tom baixo, mas extremamente autoritário: A distribuição de colchões e demais artefatos é feita durante o dia, quem é internado a noite dorme como puder, não fazemos preparativos durante a madrugada e, além disso, você não está dormindo porque não tomou o remédio e sim o cuspiu fora, se na medicação da manhã isso se repetir eu mesmo lhe aplicarei um sossega-leão na veia do pescoço que te fará dormir por dias. O recém chegado não disse nada, então o atendente apontou uma porta ao lado do banheiro dos funcionários e disse: Ali tem colchões, pegue um. Haviam seis colchões em estado razoável, três só na espuma e um quase novo que foi o escolhido. Tomou banho, vestiu a roupa e pôs o colchão no chão, dentro do buraco sem lastro no espaço de baixo do beliche. Um grupo de garotas de babydol corria e saltitava pelo corredor. Uma sirene tocou interrompendo seu sonho, abriu os olhos, a faxineira adentrou o quarto proclamando: Hora do café pessoal, vamos levantar! A friagem e o coral de tosses despertou-o por completo. Sentou-se na lateral da cama e deu de cara com um homem branco, forte como um touro, sem os dois dentes da frente sorrindo efusivamente e tendo nos olhos o registro da pesada medicação. Quer fumar? Perguntou Alexandre. Assim se chamava o interno, mostrando vários cigarros avulsos nas mãos espalmadas. Aqui eu fumo oitenta por dia e nunca me faltam cigarros, completou. Pedro aceitou um, acendeu e olhou em volta. O beliche que ficava no meio do quarto servia como pedestal a um imenso homem negro com o olhar perdido que sentado na cama de cima balbuciava algo sobre cavalos mortos. Ao lado, deitado no chão, “Sol Quente”, magrinho e agitado gargalhava fumando um toco de cigarro. No outro extremo do quarto, no leito de cima de um dos beliches Valdir, mostrando a dentadura postiça, cantava músicas românticas ininterruptamente. Na cama de baixo, um italiano conhecido como Gringo, tentava explicar acontecimentos de sua vida sem que ninguém lhe desse atenção. Instigado pelas risadas de "Sol Quente" Pedro começou a observá-los com atenção, nesse momento Valdir tomou uma atitude raríssima, parou de cantar. O novato era foco da atenção dos pacientes. Olhavam-no como se esperassem que falasse algo. Sou agnóstico. Declarou inspirado no crucifixo que Valdir ostentava no pescoço. Poderia ter dito qualquer outra coisa para por fim a expectativa. Sol Quente parou de rir. Agnóstico é uma palavra grega: “a” em grego significa “não”, gnosis “saber”. O agnóstico diz; “Não sei se há uma realidade objetiva que é refletida, transformada em imagem por nossa sensação; afirmo que não há meio de se saber tal coisa”. Era Alexandre quem dissecava a despretensiosa declaração. Pedro olhou curiosamente aquele homem, que com seu sorriso desdentado, lhe oferecia um cigarro. Pegou. Valdir começou a cantar, Sol Quente a rir. Pedro levantou-se e espiou o corredor. Para sua surpresa as garotas que saltitavam no sonho, agora todas de jaleco branco e crachá de estagiárias em psicologia, convidavam aos recém acordados para a reunião matinal. Voltou ao quarto, e pedindo atenção de todos perguntou: Porque Sol Quente dorme no chão?

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