terça-feira, 27 de março de 2012

O 4 º E Capítulo V

Aos exatos sessenta e cinco dias de muitas brigas, sessões de eletrochoques, ”mumificações”, amarrações em cama, berros noturnos e uma infinidade de horrores aos quais Pedro passara quase incólume, tinha em mãos o esboço de um conto. Lorena que gostava do que fazia, ao contrário da Dra. Claudia que de mau humor aumentava a medicação de internos baseada em seus equivocados diagnósticos, foi a grande responsável pela escrita de Pedro, inclusive o autorizando a sair da galeria para escrever na paz da biblioteca onde devorou quase todos os livros lá existentes como as obras completas de Freud e Jung e outros autores indicados por Alexandre e por ela. Além é claro, de servir de inspiração para masturbações memoráveis onde às vezes até a “malvada” Dra. Claudia era homenagiada. O atendente Emerson que vivia a contradição de no íntimo condenar os procedimentos medievais da instituição, mas como funcionário ter de executá-los, foi quem preservou sua saúde mental, evitando que ele ingerisse os remédios e levasse eletrochoques, (onde dois bastonetes ligados a uma máquina são pressionados contra as têmporas do paciente imobilizado descarregando choques elétricos na caixa craniana), componentes principais daquela verdadeira fábrica de loucos. Quando a Dra. Claudia saiu em férias, Márcia sua substituta após duas entrevistas assinou a alta de Pedro. Sairia numa quinta-feira. Na última entrevista Pedro aproveitando um vacilo da médica despejou dentro do garrafão de água mineral, água que só funcionários e médicos podiam beber, todos os remédios que ao invés de por no lixo havia moído e armazenado durante sua estadia. Iriam provar do próprio veneno. Na porta de saída da ala vários internos esperavam para despedirem-se de Pedro. Com exceção do remédio Anatensol, punição pela briga com Brastemp, passara toda a temporada naquele inferno sem ingerir nem uma aspirina. Sentia-se ótimo pela primeira vez em anos. Ciente que qualquer internação motivada por álcool ou drogas, salvo casos que já apresentem complicações orgânicas ou psíquicas acentuadas, deve ser tratada sem o uso de remédios. Dirigindo-se a esperada liberdade, no meio do corredor, Adão, nu da cintura para baixo defecava em sua própria mão e arremessava os excrementos em Brastemp que sentado no banco não esboçava qualquer reação pois se encontrava impregnado. Manifestação estranha de solidariedade para com Pedro que via a cena com tristeza pela situação de ambos. Alexandre que tinha provocado grande confusão tentando proteger Dna. Enir de um outro paciente em surto psicótico agredindo-o, estava impregnado e proibido de fumar. Chorando e rindo ao mesmo tempo, abraçou Pedro e com voz pastosa disse: Pedro, tu és feito de pedra e a partir de ti construirei minha igreja, palavras de Jesus ao apóstolo Simão Pedro, balbuciou derramado em lágrimas. Tentando animá-lo o homem citou o pintor Pablo Picasso; Por que Platão declarou que os poetas devem ser expulsos da República? Justamente porque todo poeta, todo artista, é um ser anti-social. Sua frase não surtiu o efeito desejado, pois Alexandre normalmente bem humorado continuou a chorar com mais ênfase, talvez por concordar com Platão. Valdir cantava; “... eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo...” música de Roberto Carlos. Tema que para Pedro não fazia sentido pois não tinha cachorro, muito menos um que sorrisse e nem casa para chegar em frente ao portão. Peculiaridade da doença do alcoolismo que ao inverso de todas as outras que une amigos e parentes em torno do enfermo, essa desagrega a família, dilapida qualquer patrimônio e afasta os companheiros. Emerson assistindo a tudo escorado no balcãozinho lhe fez uma continência ao estilo militar que foi retribuída com um leve aceno de cabeça. Sol quente é bom, sol quente é bom, repetia Sol Quente, batendo a mão em seu ombro. Pedro, era a primeira vez que ouvia Sol Quente pronunciar um nome, vou ficar com a sua cama, lá o bicho não vai. Dizia ele entre repetições de “sol quente é bom”. Ficou aliviado em saber que de agora em diante ele esperaria a morte pelo menos deitado em uma cama e não mais seminu tremendo de frio no chão gelado do quarto. Gringo, ao qual nunca dera atenção, o abraçando fortemente falou-lhe ao pé do ouvido; também li todos os livros da biblioteca, fez uma pausa e mudando de assunto completou: deixe de ser louco e seja apenas o Pedro, essa vida de manicômio não é pra ti, é mil vezes mais fácil enfrentar as dificuldades da vida do que anular-se em um hospício. Procure manter-se sóbrio, pois se voltares talvez não saias mais. De onde menos esperava as palavras saíam sábias. Baseado no lúcido conselho do Gringo concluiu que este também não tomava a medicação. Ia saindo com a certeza que deveria ter conversado mais com o velho. Quando a última tranca da reforçada porta se abriu, Lorena vinha chegando para as consultas, seus olhos se miraram por intermináveis segundos, Pedro quase quis continuar internado, ninguém disse palavra, o homem deu três passos e ouviu o barulho dos cadeados da porta fechando o 4º E as suas costas. O difícil seria definir se o inferno ficava do lado de dentro ou de fora daquela instituição.

Fim

Um comentário:

Steve disse...

Muito bom. Todo texto é autobiográfico!